50 minutos de análise
O dia que fui com o meu cabelo natural à análise dei o direito, sem querer, da minha psicanalista comandar a sessão. Era a primeira vez que ela me via com os fios soltos e iniciou, logo na porta de entrada, dizendo isso. Respondi que não era usual, mas como iria fazer os dreads naquele dia não teria outro jeito a não ser sair de casa assim. Aí começou: “assim como?”, “com o meu cabelo natural”, respondi; “e essa relação sempre foi desse jeito?”, “tive fases, mas nenhuma sem sair de casa por conta dele”, contei, mesmo querendo falar sobre o quanto a minha necessidade de impressionar a mim e algumas pessoas que admiro estava me atrapalhando no momento [isso eu só sei por conta do fim].
“Como foram essas fases?”.
Não teve jeito, precisei mergulhar no assunto.
Como a maioria das mulheres negras da minha geração, alternei entre alisar o cabelo e fazer permanente afro, aquele processo de passar o dia inteiro no salão inalando o desejo de se encaixar no padrão com uma química fortíssima que, a longo prazo, não deixaria nem a oportunidade de você repetir o procedimento, mas com sorte o cabelo não cairia inteiro. Nos dois casos eu saia satisfeita – isso com uns 12 ou 13 anos – ainda que o meu preferido fosse o permanente. Tinha mês que ele dava muito certo, ficava volumoso, brilhante, bonito; tinha mês que eu não me reconhecia, mas ia. Já com uns 17 anos inventei de cortar o cabelo bem curto para me livrar das pontas danificadas - e digo "inventei” porque em 2006 a internet ainda não dava tantas possibilidades de pesquisa e na TV ou nas revistas ninguém falava sobre big chop. É engraçado porque uma adolescente na minha idade se importaria em perder a feminilidade cortando como fiz naquela época, mas eu não tinha nada a perder por alguns motivos: 1) nunca fui de seguir tendência; 2) eu já vivia a solidão da mulher negra por ser, veja só, negra. Não seria o cabelo que mudaria aquele cenário; 3) sempre me senti livre. Lembro do dia que virei para minha mãe no carro, com a marginal Tietê de cenário, e disse “quero cortar tudo”. Ela sempre foi fã de cabelos curtos e não hesitou em mudar a direção para a Galeria 24 de Maio para me apresentar o cabelereiro de sua juventude. O Mangueira estilizou o meu cabelo com gel e eu fui direto encontrar uns amigos no antigo Drosophyla, na região da Augusta (como eu amava aquele bar). Muitos elogios, autoestima nas nuvens, uma noite inteira contando com orgulho sobre a minha decisão, até lavar o cabelo e não conseguir lidar com a mesma facilidade que o profissional fez. Primeira e única vez que eu não queria sair de casa, por conta do cabelo, mas saí. Neguei um passeio com as amigas do balé no bairro, faltei a uma aula; no dia seguinte estava lá porque nada poderia ser maior que a minha vontade de conquistar. Isso sempre foi assim. Nasceu comigo e se fortaleceu com as demandas da sociedade. Algum tempo depois, sem me adaptar de fato ao corte, resolvi raspar.
Aqui a minha analista soltou um “ah é?” com uma expressão impressionada que ela faz em situações bem específicas, mas nunca quando eu quero que ela esboce qualquer reação. Ela é boa no trabalho dela.
Vivi alguns anos literalmente livre. Agora só não lembro se nesta época eu já estava na minha primeira faculdade (é, comecei Design Gráfico antes de fazer Jornalismo. Um verdadeiro desvio na minha trajetória que eu não sei de onde surgiu, mas aconteceu) ou se eu ainda era bailarina. Mas não faz tanta diferença saber onde eu estava, porque eu estava me sentindo genuinamente linda. Eu combinava demais com aquela personalidade ou com aquela atitude - o que todo mundo diz quando alguém resolve romper com o padrão. “Essa menina tem muita atitude”. Foram anos frequentando os barbeiros do bairro e tingindo de loiro para variar um pouco. Quando resolvi deixar crescer, investi num visual com moicano. Outro sucesso. Ali eu já tinha a Karol Conka conversando comigo em suas músicas e também no modo como ela se apresentava para o mundo. Assistia o clipe de Gandaia no repeat. “Eu não quero nem saber, eu vou brindar, vou viver.” Cansada de esperar crescer, aí com uns 26 ou 27 anos, decidi fazer trança pela primeira vez. Depois da infância, demorei para me aproximar dessa estética tão ancestral porque minha mãe tinha medo de que eu ficasse negra demais, se é que você me entende. Não? Bom, eu já era negra, não precisava reforçar no meu cabelo que eu era negra. É surreal a capacidade do racismo estrutural, né? Ela precisou colocar isso na minha cabeça para me proteger de um provável preconceito. Não à toa tive que avisar para a minha chefe da época que segunda-feira eu chegaria com os cabelos trançados. Ouvi que eu era diferente, mas igual a um sobrinho distante dela que gostava dessas coisas. Dessas coisas. Quais coisas? Bom, tive trança verde, rosa, azul, lilás, laranja, de sereia. Não me senti feliz com todas, mas me obriguei a ser feliz com todas. Ser ignorada nos ambientes ou igualmente apontada faz com que a gente desenvolva essa vestimenta do “vou fingir que estou gostando” e eu seguia. O próximo eu escolheria melhor. Era um jogo da vida. As vezes você acha que dá, vai, faz e não funciona; as vezes você não bota fé e dá certo; as vezes você acerta de primeira. Seguimos. A verdade é que eu nunca tinha me sentido tão confortável com a imagem que refletia no espelho.
E por quê?
Porque eu me sinto completamente conectada com quem eu sou; me sinto forte, potente, invencível. É uma conexão ancestral. Sabe que uma vez, no dia do meu aniversário de 32 anos, em Salvador, fui a uma exposição de Nádia Taquary, artista plástica que naquela mostra tinha feito alguns orixás sem rosto e logo que entrei falei à Stephanie “sou eu”. Eu me vi ali, mesmo sem rosto. Senti que era um retrato meu e escrevi pra Nádia. Ela me respondeu que as mãos dela mais uma vez confirmavam que o que ela colocava no mundo era ancestral; eu estava olhando pra representação de Iansã criada por ela. Arrepiei. Eu sou iansã, eu vi iansã, eu senti iansã. Já era uma época em que “amar quem você é” estava em todos os lugares. Pensei muito sobre o assunto pra entender se eu não me amava com o cabelo natural e, de repente, precisava fazer esse esforço para aceitar a minha imagem. Cheguei à conclusão do começo: nada me para com o meu cabelo natural; tudo consigo com as minhas tranças. Escrevendo, assim, sem mergulhar nas entrelinhas, parece uma diferença sutil entre as Luandas, mas muda um mundo inteiro. Aí, por exemplo, hoje me olhei no espelho, com esse cabelo, e perguntei: “a quem você quer impressionar?” [aqui eu consegui entrar no assunto que eu queria]. Pra mim era importante saber para que eu conseguisse produzir de acordo com aquela reposta. Funciona como quando a gente nomeia as coisas, sabe? A gente não consegue resolver o que não tem nome. A minha vida mudou depois que eu tive o diagnóstico de ansiedade. Tinha um nome, eu podia cuidar. Sempre falava nas minhas consultorias de diversidade e inclusão que enquanto o País não se assumir racista, a gente não consegue resolver o problema do racismo. Enfim.
Você admira essa pessoa?
Muito, desde sempre. Acho ela uma voz de representatividade muito forte, além de me inspirar na sua trajetória como empresária. Ela tem um dom de achar talentos inquestionável; de se reinventar também.
E como é pra você estar diante de uma mulher negra?
Me fortalece muito mais quando não sou a única da roda; mas no caso dela, mesmo sendo negra, eu não vejo essa como a sua pauta principal. Quando olho pra ela penso em outras representatividades urgentes. A raça não vem primeiro.
Mas ela é negra.
Mas ela não viveu a vida com as dificuldades que é ser negra [e aqui, por favor, não estou falando sobre colorismo. Não trataria dessa pauta de forma leviana].
Você também não.
Mas eu sempre soube que eu sou negra.
Saber que é negra não significa que você tenha vivido uma vida comum a maioria da população negra no Brasil. Você sempre trouxe esse ponto aqui. Você a admira porque a trajetória de vocês é parecida, mesmo com tantas diferenças.
Aquele silêncio dramático.
Que loucura [ela não sorriu].
Se eu quero me impressionar, automaticamente eu também quero deixa-la impressionada e por isso a cobrança fora do normal dessa vez.
Deu o nosso horário, até semana que vem.
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Era um texto sobre o início do esgotamento, mas como na vida e na terapia: as coisas mudam de rumo - e se completam.
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A exposição de Nádia Taquary citada no texto é a ÌYÀMÌ.
minha nossa, se eu chorei? Sim! Fui láaaa atrás numa memória longínqua com a primeira vez que “relaxei” a raiz do cabelo, com 16 anos, e queimou meu couro cabeludo, mas só percebi em casa, com o cabelo se “soltando” da raiz. Isso foi tão violento e eu tinha (e a minha família tb) tão pouco repertório pra lidar com isso. Como mulheres negras atravessamos uma vidaaaa pra colocar tudo isso na roda e elaborar 😮💨🥹
É impressionante a capacidade que nossas terapeutas têm de arrancar aquilo que a gente acha que está escondendo muito bem rs. Me vi em você, na minha última sessão de terapia comecei falando despretensiosamente sobre o meu "cuidado relapso" com o meu cabelo e acabei no final entendendo que esse "cuidado relapso" comigo, essa contradição de palavras, se estende em quase todas as áreas da minha vida, porque estou sempre cuidando dos outros. Viva as terapeutas rs.