O cruzeiro das expectativas
Indiretamente, aprendi com a minha avó que se não houver diálogo nos afogamos nas próprias fantasias
Lembro da primeira vez que viajei na vida – não nos meus pensamentos, mas pegando estrada mesmo. Eu, uma prancha de surf daquelas retangulares [hoje sei que chama bodyboard] e um choro de medo incontrolável. Aos 2 anos de idade eu odiei a praia. Essa imagem somada ao clima de decepção de toda a minha família parada no calçadão olhando para o mar não saem da minha cabeça; todos os outros detalhes que eu sei sobre isso é história. Quebrei as expectativas dos meus pais e da minha avó com a tão esperada semana no litoral; e pensando aqui, nunca me senti culpada por isso. Engraçado como em determinadas situações a culpa vem a partir da reação do outro, né? Nota 10 para a minha família em lidar com o acaso. A gente cresce e entende que a vida é feita de acasos – e que a culpa vira quase que automática, a partir de nós mesmos, de tanto que partiu do outro.
De lá para cá foram incontáveis as vezes que eu tive o mar como cura.
Dia desses uma seguidora criticou a quantidade de saco plástico usada por mim para carregar as frutas no mercado. Eu sei exatamente sobre a minha parcela de culpa, principalmente quando a gente pensa em micropolítica e sustentabilidade, mas fiquei refletindo sobre dois pontos interligados: as nossas expectativas podem esbarrar em traumas alheios. Foi o que aconteceu com a gente. A expectativa dela em me fazer ter consciência ambiental, ainda que de forma abrupta, tocou em um dos maiores traumas da população negra (ou pelo menos das dezenas de seguidores que compartilharam comigo os seus relatos), que é ser acusada de roubo dentro de qualquer comércio. Enquanto pessoas não negras vão ao mercado sem pensar, nós precisamos criar estratégias práticas e psicológicas para qualquer tipo de “acaso” – e aqui com certeza precisa ser entre aspas porque o nome desse acaso é racismo. Outra falou, “nossa, mas sustentabilidade é tão urgente quanto diversidade e inclusão”. Eu concordo, mas na balança da sustentabilidade, diversidade e saúde mental, numa sociedade em que o próprio mercado (e aqui cabem outras indústrias) não me dá soluções sustentáveis, como sacolas de papel, por exemplo, quem é mais urgente? Se você leu o meu último texto, então deve saber que, egóica que sou, nada vale mais que a minha cabeça e corpo confortáveis. Eu não quero mais viver no desconforto, inclusive para poder mudar o que está ao meu alcance. Por isso, escrevo.
Aliás, lembrei de Ryane Leão: “talvez hoje seja o melhor dia pra saber que a sua voz tem o poder de erguer cidades inteiras, remontar peitos em chamas, mas primeiro você”. Está aí uma expectativa para quebrar: ninguém cuida de ninguém sem se cuidar.
Quem me fez pensar sobre expectativas na última semana foi a minha avó, que, desde aquela minha primeira viagem à praia, nunca mais saiu de São Paulo comigo. Entre os muitos motivos dessa ausência, acredito que está a expectativa da sociedade em relação a uma família como a nossa. Ela atrapalhou o desenvolvimento de uma sensação muito poderosa, para minha vó, que é o pertencimento. O outro motivo é ela ter medo de alguns meios de transporte, principalmente de avião. Neste ano resolvemos mudar essa narrativa e, com o aval dela, fazer uma viagem de navio. É aqui que a expectativa entra em cena, de novo.
Dessa vez é a minha.
Passei 10 meses especulando na minha cabeça ou em conversas aleatórias sobre como seria “a primeira viagem da minha vó”. Sempre que o assunto era esse, eu não perdia a oportunidade de falar que era “a primeira viagem da minha vó”; quando eu precisei declinar alguns trabalhos, coloquei “a primeira viagem da minha vó” como prioridade; mesmo não gostando de cruzeiros, era “a primeira viagem da minha vó”.
A primeira viagem da minha vó foi inesquecível: ela cantou, dançou, riu – e como riu, aplaudiu com entusiasmo, se emocionou em Salvador, distribuiu beijos e foi muito feliz.
Mas “a primeira viagem da minha vó” só era “a primeira viagem da minha vó” na minha cabeça. Na dela era mais um dia bem vivido. Ela nunca encarou aquele momento como uma primeira vez, mas como uma oportunidade de aproveitar a família reunida fazendo tudo que ela ama: cantar, dançar, rir, aplaudir, se emocionar. Ali, pude perceber que o lugar era indiferente e o fato dela nunca ter viajado, extremamente irrelevante. Minha vó não tinha expectativas porque ela aprendeu a viver conforme a vida vai se apresentando. É lindo de ver – e o que eu desejo para o próximo ano.
Que a gente aprenda a viver conforme a vida vai se apresentando.
lindo o texto, me identifiquei demais!
que texto mais lindo!!!!! <3