“A vida era assim e ponto final, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós” - trecho do livro A Amiga Genial, de Elena Ferrante
As aulas de interpretação de texto sempre foram as minhas preferidas, não à toa as minhas professoras de português também. Gosto dessa coisa de imaginar outras realidades a partir de palavras concretas. As não ditas são suposições - e geram ansiedade. Aliás, você já pensou quanta beleza cabe numa palavra? São tantas possibilidades de poesia; muita vida.
Dentre várias mensagens curiosas sobre a minha viagem de férias à Cuba, Freud explica o apego ao incômodo. Então vim terminar de desatar esse nó.
10 em ponto, hora da aula.
Na frase “juro, admiro por estarem aí […] não posso me imaginar em um lugar onde o povo não pode frequentar os locais que eu, como turista, posso” qual é a sensação que o sujeito gostaria de despertar no receptor?
Culpa.
Eu tentei me sentir culpada. E não foi pouco.
Mas não consegui.
O que eu tive foi dor no peito.
Caminhar por Havana é duro porque a história por trás de cada sorriso é o lixo abandonado. De meses, anos talvez. Parou no tempo. Ficou decadente. Mas as possibilidades de poesia são tantas, lembra, que todas as casas cantam. É bonito e até lembra da gente. Nossa gente que samba em troca de força para continuar. Ao mesmo tempo é tudo tão longe da gente. Tenho vergonha de quem usa “socialista de iPhone” com conhecimento de causa, agora. Falta vontade de conhecer. Sobra compartilhamento de corrente no WhatsApp.
Maria, nossa guia local, disse que ninguém quer viver na miséria; todo mundo quer viver no conforto. O conceito é simples e fácil de entender. Difícil na prática do privilégio.
No fim das contas, estar em dia com a terapia deve significar isso mesmo, conviver em paz com aquilo que não podemos mudar - e ainda assim não ser indiferente às injustiças -, como a política de um País que não é o nosso, a falta de consciência de classe dos outros, a irresponsabilidade afetiva de quem, ao invés de se calar, prefere apertar “enviar mensagem” e de quebra entregar as próprias frustrações para o destinatário lidar.
Pensei numa vida cheia de hipocrisia. Veja bem.
Almoçar em um restaurante nos Jardins que a conta daria a compra do mês de uma família que depende de um salário mínimo e, em seguida, negar comida para uma pessoa em situação de rua não incomoda a minha interlocutora; mas em Cuba incomodaria. Começar a corrida por um emprego melhor em primeiro lugar enquanto uma pessoa com marcadores de vulnerabilidade talvez não tenha nem espaço na última posição não incomoda a minha interlocutora; mas em Cuba incomodaria. São tantas intersecções da rotina banal que não incomodam, mas incomodariam em Cuba, que eu escolhi não carregar a mala da culpa que não tem o meu nome, porque eu quero continuar caminhando leve com as minhas escolhas. Nem sempre corretas, mas minhas escolhas.
Lembrei de um passado até que recente quando era mais fácil jogar batata quente com outras pessoas, tendo a minha culpa como a batata, ao invés de encarar a sensação de desconforto. Na falsa elegância de se compadecer pelo próximo, é deselegante fugir da solução do que nos consome, na mesma medida que é importante questionar por que as escolhas do outro mexem tanto com a gente.
O que será que tem no vizinho que falta em casa?
Escrevendo sobre coragem para o meu livro, penso que a culpa também é a falta dela. A gente se culpa por não ir; e muitas vezes se culpa quando vai. A gente se culpa por ganhar; mas muitas vezes se culpa quando perde.
A gente culpa o outro por se informar; e muitas vezes não se culpa por julgar.
A verdade é que não estamos livres dela.
O desafio é o que fazer com ela.
Generoso mesmo é não terceirizar.
Claro que toda interpretação está passível ao erro. A nossa culpa também.
Que texto incrível, Lu! Não apenas pela reflexão, que me tocou realmente, mas também pela forma. Vejo que está mais livre e ousada também na forma da escrita. Muito bom te ler!
🥹🙏🏾