“Nós vamos nos responsabilizar pela nossa felicidade de forma autônoma;
nos conhecendo e como seres maduros, adultos, a gente vai dar liberdade para as pessoas serem o que elas são e o que elas podem ser” – Preta de Quebrada, de Floras Matos
Eu quero trabalhar na TV.
Desde que tomei essa decisão também optei por retirar a minha pinta de nascença do rosto. Nada diretamente relacionado a estética, apesar de no fim ser, sim, uma ação estética. Mas fui além. Quando determinei que nos próximos anos eu iria me preparar para esse novo passo na minha trajetória profissional, comecei a pensar sobre a Luanda que eu gostaria que esse outro público conhecesse: como ela se posiciona, o que ela veste, qual é o estilo de suas fotos, sobre o que ela escreve. Respostas que eu já sabia, mas que precisavam concretizar no papel. Conforme enfrento alguns traumas de peito aberto, tipo a bagunça que uma pessoa manipuladora pode fazer com a nossa cabeça, consigo compreender com muita nitidez o que eu não quero, o que eu não gosto, o que eu não aceito, o que eu não faria, o que não cabe - mais. Me olhei no espelho e a pinta, de uma forma muito simbólica e especial, não cabia mais. Entre a falta de espaço tinha muita coisa dentro, inclusive a vontade de abandonar algumas feridas.
Um semestre inteiro pensando.
Tirei.
No mesmo dia do procedimento contei para uma conhecida sobre ser uma nova pessoa. Ela me respondeu de forma muito genuína que “na verdade não é, Lu”. Mudei a narrativa na mesma hora porque, realmente, não sou. Me expressei mal. Fui no automático. Falei o óbvio. Quer dizer, até sou, mas não por conta da pinta. Talvez pela decisão de retirá-la depois de 35 anos e tudo que eu vi se transformar em mim a partir disso. Ela foi a testemunha quase ocular de inúmeros momentos. Vivemos demais.
Aprendi que a gente precisa normalizar finais que estão no auge. Para acabar não precisa estar ruim (mas lembre que se estiver, talvez seja urgente acabar).
Aquela mesma resposta evidenciou o quanto a gente, que gosta de escrever ou que pensa demais, escolhe encontrar significado em tudo. Poderia ser só uma pinta e a sua retirada, mas por aqui representa o que não cabe. Vira poesia.
Não saberia ver o mundo com outros olhos. Ainda bem.
Ainda bem mesmo precisando de inúmeras sessões de terapia para perdoar os olhos que se enganam. Ainda bem mesmo que a emoção me tire a obviedade de relações abusivas (fui falar “relação não amorosa” hoje, na terapia, e ela me corrigiu dizendo que o que eu estava relatando era abuso. Nunca mais vou deixar de dar o nome às coisas. Falei no texto anterior, até, que o que a gente não nomeia, não resolve). Ainda bem mesmo que esse olhar, por vezes, foque na direção errada. Ainda bem porque existe um lado positivo infinitamente compensador. Proponho, aliás, um brinde à beleza da dicotomia da vida. Nada é 100% bom ou 100% ruim. Parte tem a ver com o que se escolhe mostrar. Parte tem a ver com o que se escolhe ver.
A ausência da pinta trouxe, enfim, um marco necessário às mudanças de rotas; de transformações que já vinham acontecendo dentro de mim há meses e agora explodiram para fora. Acho bonito pensar nela como um divisor de águas, sobretudo um divisor que separa o que foi memorável do que pode ser memorável.
Continuo me reconhecendo como sou.
Nossa, e como dói saber reconhecer.
Inclusive, recomendo.
Acho sorte de quem se reconhece.
Nos erros e nos acertos.
Talvez a palavra nem seja sorte, mas digno.
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Ao fim dessa leitura sugiro o livro Bolo Preto (Companhia das Letras), de Charmaine Wilkerson, para refletir sobre os “ainda bem mesmo” da vida. Na narrativa eles não aparecem como "ainda bem” mas vocês vão entender. Em seguida, recomendo a adaptação do livro para a série Doce Mistério, produzida por Oprah Winfrey (Star+).
adorei o texto! a frase “o que a gente não nomeia, não resolve” mexeu comigo!
A citação da música já tinha me matado! Uma linda semana!