“Camila não falou mais comigo o resto da aula, até o mata-borrão ela pediu de outra aluna, sendo que eu sabia que ela preferia o meu, e depois precisou do tinteiro e os do lado não tinham mais e ela ficou sem escrever, normalmente eu acharia engraçado esse esforço de mágoa, mas naquele dia eu tinha trinta ou quarenta anos dentro daquele corpinho troncho e só pensei que triste era ser assim criança e não saber comunicar” – trecho do livro “É sempre a hora da nossa morte amém”, de Mariana Salomão Carrera.
Inicio o meu ano com um poder avassalador de realizar.
Não tenho tempo a perder porque ainda parafraseando a mesma autora “como se pode viver e fazer planos num mundo onde tudo acaba tanto”? Vou romantizar todas as minhas conquistas até aqui e, sobretudo, a partir daqui. Afinal, nada muda o fato delas terem sido fruto do meu falecido burnout e, posteriormente, como eu soube transformar o processo de cura em palavras – que também fazia parte do processo de cura dentro de um grande circuito de repetições [a verdade é que o nome não é cura, mas vigilância. Por isso a repetição]. O que muda é a narrativa, o tom de voz, o enquadramento. Dar nome aos problemas e falar sobre eles muda vidas; seguir caminhando, mesmo com dor, é sempre motivo de fogos de artifícios na janela, como presenciei em Berlim. “Ah, mas você não pode incentivar que se caminhe com dor”, dizem os perfis de positividade tóxica. Na vida real a gente as vezes acaba caminhando com dor, vocês sabem. Na vida ideal a gente se recupera e depois continua avançando. Vale agradecer se a vida ideal faz parte da sua rotina. Agradeço por me permitir viver entre o real e o ideal.
Irreal.
Até contraditório.
Só sei que sigo.
Tudo já é pesado demais; então vou romantizar, sim. Vou romantizar os meus dias de cama fora da cama porque eu sei exatamente quais são as dualidades da sensação de levantar quando se quer deitar. Um misto de “credo que delícia”; eu consegui, mas eu precisei. Passei muito por isso no primeiro semestre dos 34 anos; passei mais ou menos por isso no segundo semestre dos 34 anos. A Luanda dos 35 também não vai passar, mas sabe a importância de não esquecer. Como vi de perto na Alemanha, os memoriais servem, principalmente, para que os erros não se repitam.
O meu burnout e a minha ansiedade são erros que não são meus, mas igualmente meus. Os lembro para não repetir.
São meus sempre que me entreguei a relações abusivas, no trabalho e na vida pessoal. A gente se entrega por falta de conhecimento, insegurança e até ambição; na última, muitas vezes achando que temos o controle até que a única saída seja caminhar com dor ou recuperar para depois avançar.
É real.
A Luanda dos 35 tem um poder avassalador de realizar. Sem repetir. Repetindo.
Verdade seja dita: tudo machuca o tempo inteiro. Mas a Luanda dos 35 se conhece tão bem a ponto de evitar qualquer encontro com o desconforto, mesmo sabendo que a maioria deles são inevitáveis. A Luanda dos 35 promete se blindar, mas vive com a voz de Pedro Bial, em Use filtro solar, na cabeça: “as encrencas de verdade da sua vida, tendem a vir de coisas que nunca passaram pela sua cabeça preocupada e te pegam no ponto fraco às 4h da tarde de uma terça-feira modorrenta”.
A Luanda dos 35 vai viver.
Mas se eu já sei que não gosto do lugar, não vou; se eu já sei que o rumo da conversa vai me machucar, não continuo o assunto; se eu já sei que eu não dou conta de mais uma decepção, não convivo com eles. E as vezes eu até vou, continuo e convivo porque a vida, gente, acontece no acaso – e viver nele é viver lado a lado com a coragem. A palavra do meu ano. De todos os anos. Para sempre.
O meu presente é resultado do acaso.
Mas não deixa de ser a soma do meu passado planejado.
Está aí.
A Luanda dos 35 é a mistura do meu capricórnio com gêmeos.
Escrevo que a vista é linda daqui porque morro de medo de recomeços, esses como a virada do ano. Por um instante parece que tudo que construí ficou restrito ao passado. Vou ter que fazer de novo. Virar a página. Reinventar o jogo.
Eu preciso que a Luanda dos 36 estenda as mãos e diga: “vem, a vista é linda daqui”.
Escrevo que a vista é linda daqui porque gosto dos recomeços que vêm com o meu aniversário. Eles sempre chegam cheios de vontades. Exatos 13 dias separam a Luanda medrosa da Luanda imbatível, repleta de planos ao acaso. E como tudo que eu escrevo acontece: a Luanda dos 35 tem um poder avassalador de realizar.
E repete.
Porque a Luanda dos 35 anos sabe onde quer chegar, mas não recusa qualquer mudança no meio do caminho.
A Luanda dos 35 vai viver;
E viver requer vida real, ideal, irreal;
Caminhar com dor, recuperar e avançar;
Cair em relações abusivas, mesmo sendo letrada - e sair delas porque a Luanda dos 35 vai viver;
Longe dos desconfortos que rondam - eles sempre rondam;
Perto das oportunidades do acaso;
Junto com a dicotomia que é viver de verdade. Não tem jeito.
Vem que a vista é linda daqui.
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Para apreciar a vista, que é linda daqui, sugiro o trabalho da artista Zanele Muholi, sobretudo o autorretrato que inspirou este texto: Room 2005 [a foto da foto que tirei no Museu Brandhorst, em Munique, Alemanha].
“O meu presente é resultado do acaso.
Mas não deixa de ser a soma do meu passado planejado.”
Tô presa nessa quote 🤎✨
AMEI o texto. também sou mistura de capricórnio com gêmeos, que locura a gente. e tá certa de romantizar as conquistas sim!! só a gente sabe o quanto sua pra realiza-las...